Então, abri os olhos. Abri os olhos e depois de tantas horas
a pensar inconscientemente, a acordar de um sono pouco profundo de tempos em
tempos, senti-me exausta. Drenada. Como se a minha alma se tivesse esvaziado
durante aquele tempo de descanso tão impuro. Como se toda a minha dor tivesse
aumentado numa concentração aquosa de todas as lágrimas que podia ter chorado e
não chorei. E os segundos vão passando enquanto eu repetia o que já era tão
hábito fazer diariamente. E dessa vez não pude evitar pensar. Não pude evitar
cair naquela mágoa tão grande que tanto alcançava o meu coração, enquanto eu
desejava fugir de mim mesma e não ter ouvido aquelas palavras que passaram a
barreira imposta à minha alma e tocaram o meu espírito de maneira tão cruel e
fria. Toda a minha paciência e concentração foram abaladas pela vibração
daqueles sentimentos tão antigos que eu já nem reconhecia como sendo meus.
Então caí, como um anjo de asas brancas e puras a quem foi tirado o coração,
anjo esse que criou um ódio tão grande por si mesmo e para com o mundo que as
suas asas se tornaram negras como o ébano. E entendi então que nada em mim
estava pronto para sentir. Nada em mim estava pronto para estar exposto à mágoa
e ao sofrimento. Nada em mim estava pronto para amar. E portanto ali estava eu,
junto àquela porta gigante que servia de passagem para o mundo pertencente ao
meu coração, sem sentir, desprecavida. E tinha tentado tanto passar pela porta
que estava marcada de todas as tentativas vãs de conseguir o meu coração de
volta. O que eu era, perdi. O que eu senti, não sinto mais. Fui abandonada à
sorte de um pensamento contínuo e insaciável, de uma alma impura e inquieta que
não me deixava viver a não ser na sombra, pois todo o meu ser fugia da luz. E
cada vez mais me sentia arrastada para um mundo que não era o meu. Sentia
pedaços de mim serem roubados e estilhaçados, contra uma parede invisível que
eu quase passara a temer. Eu era a escuridão, não a luz. Eu era, e sou, a dor.
O sofrimento, as lágrimas reprimidas e a falta de sentimentos de culpa. E essa
sou eu, independentemente do que faça ou diga. Sou um conjunto de pedaços de
nada, que se revolta de quando em vez para perder pequenos pedaços e pequenas
qualidades adquiridas. Sou como uma águia que voa alto, mas como um boomerang
que volta sempre ao mesmo lugar de onde outrora partiu. Eu sou, meu bem, o
início e o fim. Sou uma poça de dor e cansaço. Sou uma mentira vivida, uma
canção inventada. Sou a pessoa que acorda e não sente. Sou a pessoa que deseja
tanto mas mente. Sou a perdição do sol, a escuridão tentada. Sou um pedaço
vazio de tudo o que havia e se perdeu, até não sobrar nada.
E finalmente, meu amor, sou aquela que tens de deixar a cada
amanhã. Sou aquela que tudo estilhaçará, independentemente do que sinta,
independentemente do que faça. Sou um destino vazio, um ponto de vista mais
além, preso a uma eterna fuga da luminosidade do dia. E é por isso que tenho de
partir. É por isso que não posso ficar. É por isso, que para não ser uma
desilusão tão grande, tenho de dizer adeus, esquecendo todos os meus egoísmos e
vontades, e abraçando a escuridão onde tantas vezes encontrei a paz. Porque no
final de contas, apenas preciso de um sítio escuro e quente, onde possa sempre
voltar.