(…) E como uma drogada ansiosa pela
próxima dose, injectei a minha droga pessoal no meu sistema, sem sequer me
preocupar com a dor que a agulha causava ao ser retirada. Deuses, como doía. E
eu voltava sempre a busca-la, tudo em prol da felicidade momentânea que tanto
me aprazia ter. E toda essa droga dirigia-se para o meu coração. Tinha sido
sempre lá que a dor vivera, que a droga se alimentara de mim, se aprofundara no
meu ser de modo tão profundo que eu mal sabia onde ela acabava e começava o
verdadeiro eu. E a droga flui carinhosamente pelas minhas veias, como uma
carícia, tentando de todas as maneiras controlar o que um dia eu fui. Oh minha
droga predilecta, como me deixaste viciada em ti, em tão pouco tempo… E tempo
sem ti não é tempo, vida sem ti não é vida. E desejo casa vez mais a tua
presença em mim. Mas… chegou o tempo da desintoxicação. O tempo de extrair cada
pingo desta droga de dentro de mim. Chegou o tempo de fechar o passado, de
abrir o presente ao futuro. Meu vício, minha droga, sentirei a tua falta. Oh e
que falta me farás! Momentaneamente, tudo parecerá bem mas depressa sentirei o
vazio em teu lugar. Droga, minha doce droga, minha intoxicação, meu prazer
pessoal, fogo que arde nas minhas veias, sei admitir quando um fim chega, e o
meu chegou. E todas as injecções desaparecerão, deitá-las-ei no lixo antes
mesmo de sentir o toque frio do metal contra a minha pele. Doce, doce, doce
droga que alimentaste o meu coração de esperança e o deixaste vazio. Deixaste-o
vazio para ser preenchido com quê? Ar? Não sei o que meter em teu lugar, no
lugar onde mais nada existiu. Oh, o gosto de te sentir nas minhas veias, fria,
implacável, sombria, com tudo o que contigo vinha. A desintoxicação não vai ser
leve, minha companheira de veia, minha invasão do coração. Parte de mim estará
sempre contigo, mesmo depois de todas as lágrimas de necessidade que me fizeste
passar, mesmo depois das noites de delírio insano em que me deixavas consciente
da tua presença em mim, com tuas asas negras ao vento. Minha doce droga, aroma
da minha alma, sopro do meu coração, vida jogada ao lixo, desperdiçada em vão.
E se eu te pedisse para não me deixares ir? Entrarias pelas minhas veias de
modo diferente? Não me farias ter saudades da doçura do metal? Já não sei o que
é estar limpo, livre, ansiosa por viver. Prendeste-me a ti, indubitavelmente
para a eternidade. Cada litro do meu sangue vem com parte de ti, parte do que
me fazes ver, sentir, cheirar, querer. Tudo em mim és tu e tudo em mim é um
sofrimento prazenteiro desde que existes. Tudo em mim não é mar, sol e terra. É
chão, água da torneira e luz do candeeiro fraca, oh linda droga do meu sistema,
bela invasão do meu respirar longo e profundo, visão do inferno na terra e do
pecado no céu. Criadora de mundos sem fim, de canções de embalar, de vícios
adicionais, de melodias silenciosas no fundo de um olhar. Parece
incompreensível, minha cruz, meu sofrimento, meu prazer, minha alegria. E com
doçura chamo por ti. E com lágrimas te deixo partir. E com um grito sufocado
corro na direcção oposta para não te prender de novo a mim. E nesta cadência
perfumada do ar, onde coexistimos juntas, minha droga, meu coração, estamos
unidas pelo oceano, afastadas como o céu e a terra e tudo o resto á nossa volta
pára. E o mundo quebrar-se-á quando tudo acabar. Mas hoje é tempo de me
desintoxicar, de limpar o meu sangue de ti, que tão depressa correste pelas
minhas células humanas de forma tão letal.
Dir-te-ei adeus de forma solene,
enquanto me impeço de derramar lágrimas de apego e compaixão, enquanto me
agarro ao mundo de forma cruel para não correr para ti de novo. Enquanto te
dreno do meu sangue, destilando tudo o que há em mim, roubando-me a mim mesma
sentimentos, lágrimas, sorrisos o calor, o frio, a manhã e a noite. Meu
coração, tão drogado e tão perdido de sanidade gemerá por tu até ao fim dos
seus dias. E eu não voltarei para o vício, não posso, não devo. Vou
acorrentar-me a uma cadeira, a uma cama, a todo e qualquer mobiliário para não
te perseguir, para não te desejar no meu sangue de novo. Para não te abraçar
nas minhas veias, para te soltar do meu coração. Doce droga, deixar-te-ei esta
noite, com tudo a que tenho direito. Descreverei sempre a minha experiencia
contigo como uma fase negra do capuchinho vermelho no bosque escondido. Eu sei
que nada disto faz sentido. Mas porque faria, se ainda bates no meu peito? Se
ainda tenho restos de ti no meu sangue, se tenho a tua marca tatuada nos meus
olhos, se ainda sinto o metal frio nas minhas mãos. E lembro-me do sangue que
escorreu quando apunhalei meu coração de cima a baixo, de maneira cruel e quase
satânica, enquanto me deliciava contigo em meu pensamento. Enquanto delirava
com o teu odor abraçada á minha almofada, sentindo o teu calor nos meus sonhos,
a tal alma na minha mente, que me amordaçava os sentimentos, que quebrava as
tentativas de alcance da paz- Doce droga, doce tentação, doce pecado da minha
vida, sentida em cada batida do meu coração, em cada conto da minha alma, em
casa lágrima, em casa riso, em casa vez que menti com o olhar e o riso,
tentando esconder o que tanto me consome por dentro, o que tanto me conduz á
insanidade, contigo misturada dentro de mim como uma poção inacabável. Como uma
reserva inesgotável de prazer, dor, solidão, companhia, alegria, tristeza,
maldade, bondade, e tudo o que mais viesse, tao perto do meu coração como se
fosse eu mesma. Oh minha loucura tao pura, tão adorada, tao inculpável, tão
generosa para comigo, que espero que afastes a droga pura de mim, o sabor da
alegria do meu ser. E tudo o resto. Põe-me num estado de dormência seguro, te
peço solenemente com a dor banhada em meu coração que me adormeças de novo,
para que possa perdoar, esquecer, paralisar uma vida que não quero ter.
Adormece o meu lado que mora com esse anjo cruel, com essa alma doente e sombria,
que descobre os meus sonhos e os desfaz contra uma parede invisível que causa
sofrimento e dor no peito, que me admite como uma drogada incurável, em que a
droga nas minhas veias é compartilhada e vendida e quase quebrada entre
sentimentos confusos escritos por uma alma morta em si mesma. E a canção que
todos não conhecem grita no meu coração a pura verdade que a alma não aceita
como sua. E tudo pára nos poucos segundos em que a sanidade volta ao meu
coração. A insanidade leva á perdição, á terra do pecado onde só
entra quem provou a droga tão indigna que tocou o meu coração, que conduziu as
minhas veias á perdição do vazio. E quando a desintoxicação começa, meu bem,
meu anjo, meu coração gelado, todas as estrelas se perdem e ganham e fogem da razão
de viver da pobre alma sofrida que compartilha o espaço lunar com a minha
própria alma. A desintoxicação é o que mais custa, é o que mais dói no fundo da
alma, do espírito, do que me une a mim mesma. Do que é contido no mais profundo
segredo das minhas veias. E as vozes acalmam o silêncio, as vozes suspirantes
que não destroem o mal mas que o alimentam a cada dia que passa.
Desintoxicação, a palavra-chave a partir do momento em que tudo se quebrou, a
partir do momento em que o reino caiu, a partir do segundo racional em que um
coração outrora quebrado e colado se voltou a quebrar. A partir do momento em
que a droga consumiu as aurículas, os ventrículos e aos poucos tomou conta de
mim, que aos poucos me conduziu ao descalabro, á perdição tentada de vida outrora
exacta e agora misturada entre tantas outras como fio de lã no meio de uma
confusão de novelos simetricamente iguais, mas tão diferentes como a luz e a
escuridão. E arrancar-te-ei do meu peito, gritarei vitoria perante a destruição
de tudo o que nos une, perante a quebra da ligação sombria que nos causa
arrepio quando tu, droga insana, tocas no meu coração, tocas a minha alma ao
mesmo tempo, e me deixas numa espiral profunda de dor que torna a vida tao bela
mas ao mesmo tempo tao escura e irreal como no momento em que me tocaste a alma
pela primeira vez. E a vida continuará sem ti, mas quase imposta, quase
obrigada a continuar a ser contada e tao inábil como uma criança de 3 anos á
frente de um modelo de construção da torre Eiffel para maiores de 16. E saberei
quando estiveres perto de mim, quando sentir o teu cheiro no ar, quando tiver
de novo a vontade imediata do metal frio na minha pele, furando-a, passando
através dele num sentimento de ganho tao sujo, como roubo de um mundo, como
roubo de uma vida alheia, quebrada e roubada, destruída e alienada. E tudo se
tornará claro, mais tarde, depois de longa reflexão sobre todo o pecado
cometido a casa injecção, o murmúrio de prazer a casa batida cardíaca quase
pecaminosa, num espelho da irrealidade confusa em que vivemos, á beira desse
penhasco sísmico irregular em que poderemos cair de um momento para o outro,
tendo a tentação ao nosso lado, pesando em nossas costas como um rochedo. E sei
que inutilizada também sofres de igual modo, também te conduzes á evaporação,
também te eliminas a ti mesma, roubando ao tempo a vontade pura e impregnando o
ar com o odor conducente ao desespero celestial em que a alma é torturada e o
espirito vendido ao diabo e clausurado nele. E a canção, oh, a melodia pura.
Anjo da minha alma, perda de tempo raciona quase utilizado para um desperdício
que vai ser destilado do meu sangue. E todos os sentimentos alterados voltarão
ao normal. O sangue voltará a correr livre, sem a droga misturada, sem a poção
insanamente dominante, sem o pedaço que completa o pobre coração, perdida em memórias
antigas mas com o sangue a correr. Deixar-te-ei, minha droga, meu coração, sem
me despedir. Sem dizer adeus, sem um ponto final tão pedido mas ineficiente na
probabilidade elevada da existência de uma recaída profunda. E a sanidade
acabara por voltar, não completa mas parcialmente e toda a corrida terá um
propósito, uma meta a atingir. O tempo contará de novo, com segundos retirados,
aqueles em que me agarro às memórias desviantes em que a minha droga e eu
tantas vezes nos unimos. Cada acordar vai ser diferente, com um sorriso, com
uma lembrança quase vazia. Com um frio na mente de onde a droga foi lavada, de
onde quase foi arrancada com a ferocidade tão característica da perda, com o
brilho no olhar que luta pela contenção das lágrimas, com o controle do peito
que teima em quebrar-se longe dos olhos de todos.
Droga, eu te conheci, eu te li, eu te
escrevi em mim inúmeras vezes. E tudo de ti ficou escrito em mim, como tinta
permanente, e gravado no meu coração como uma tatuagem irreal e complexa, em
raios eléctricos sem dor e dolorosos ao mesmo tempo. Quis-te comigo, agora
tenho de te largar. De deixar ir o vicio, de te lavar de mim… Chegou a hora
minha droga, meu calor interno que perco á medida que respiro….
“ E o para sempre não existirá
enquanto tudo muda na nossa realidade tão vazia e cheia e tão preenchente da
alma vazia. Até um dia minha droga, ver-nos-emos quando tudo terminar.”